quinta-feira, 14 de abril de 2011

Há anjos













                                                                   À memória de Mário Cesariny

Há anjos
que não compreendem o que dizemos
que não compreendem o próprio sentido
das palavras que, incessantemente, repetem
da esperança universal de que têm de nos convencer diariamente.

Há anjos que ressonam como foles
que andam cansados porque estão acordados há séculos
que precisam de ser transportados às costas
alimentados intravenosamente
protegidos da ferocidade do mundo.

Há anjos que lêem livros
anjos que escrevem poemas.

Há anjos que deixaram crescer a barba
que gostam de se deixar adormecer pelo comovente murmurar
das barbearias.

Há anjos que acabaram de nascer
que têm nomes vulgares
que viajam de avião
que até gostam de aeroportos.

Há anjos secretamente apaixonados por fadas,
por longos rios cheios de luzes
por súbitos glaciares.

Há anjos que são subcutâneos.

Há anjos que estão sempre com febre
que são ingênuos como enigmas.
Há anjos que vivem em arranha-céus,
que trabalham em andaimes
de onde às vezes se precipitam de propósito.

E há anjos que são funâmbulos.

Há anjos que talvez nos surpreendam
que às vezes nos saúdam, disfarçadamente, por entre a multidão
que abrem os olhos de noite.

Que, na sua voz interrompida, mutilada,
pedem calma.

Pedem muita calma.


António Ladeira


(com foto de Corbin K. Zahrt)

Li em As folhas ardem.

Sobre António Ladeira.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Herói das Estrelas



O herói tem uma capa de estrelas
E um cinto de cometas
E na testa a estrela solitária
Da irmandade dos planetas
Voa o seu vôo noturno
E nos dedos ele usa os misteriosos
Fulgurantes sete anéis de saturno
E tem nas mãos uma espada de luz
Que um anjo astronauta lhe deu
Quando se encontraram pelo espaço
E ao anjo astronauta ele então respondeu:
- O meu caminho eu sei
Mas eu não sei qual é o seu
No universo tudo vôa
Tudo parece balão
É que pra mim, anjo astronauta
Só me interessam os caminhos
Que levam ao coração

De Jorge Mautner e Nelson Jacobina.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Mãos dadas



















Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade