domingo, 27 de maio de 2012

Grandes poetas
















Agora talvez entendas porque não escrevo
entretida com a arquitectura volátil dos dias
com os afazeres esponsais e profissionais
a apanhar eléctricos em curto-circuitos
às voltas com este tumulto manso que abafo
porque, sejamos sinceros, só grandes tumultos
dão grandes poetas, de resto há a frieza
dos que se mentem a si próprios
e vão chamando a si os pássaros
quando o que deveriam era libertar os seus
numa torrente que não acompanham ortografias
nem radiografias sentimentais.

Desculpa se me tornei naquilo que queria ser
quando escrevia: amante e amada
de tal forma que se tocar em flores elas se multiplicam
se beber água nasce um caudal por entre milhares de minérios
se falar de estrelas um segundo demora anos-luz a passar.
À antiga pergunta se antes a vida que a escrita
melhor a primeira quando pior é a segunda
porque, mais uma vez a sinceridade,
só grandes vidas dão grandes escritas,
grandezas díspares, com certeza, mas grandezas, sem dúvida.

Assim chego eu a casa e faço o jantar
e lavo a loiça – quando não a acumulo em pilhas -
e leio livros – quando não me lembro da televisão -
e sou feliz quando enlaço as mãos na maresia
e vou ao cinema com amigos
e passeio de braço dado com a mamã.

Se isto dá uma grande poeta?
tenho-me perguntado, todos os dias,
e à noite uma cavalgada inquieta
dirige-se à região desamparada do cérebro
à côncava existência do corpo ainda insatisfeito
a essa solidão sublime que me levou em certos dias
aos Himalaias e noutros ao farol de Brest.
Nesses segundos que se dirigem a mim
Von Hofmannsthal volta ao esperma para não nascer
e tudo é possível desde amar mulheres até matar
e sobreviver ao crime limpidamente.

Nesses segundos os meus poemas poderiam ser grandes
e ser eu uma grande poeta
apascentando-me de folhinhas de louro
e para mim ter metros infindos de mundo por explorar.


Ana Salomé

Uma certa quantidade




















Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro


Mário Cesariny

Com imagem do documentário Autografia (2004), de Miguel Gonçalves Mendes, sobre Cesariny.

Ai de mim, Copacabana

um dia depois do outro
numa casa abandonada
numa avenida
pelas três da madrugada
num barco sem vela aberta
nesse mar
nem mar sem rumo certo
longe de ti
ou bem perto
é indiferente, meu bem

um dia depois do outro
ao teu lado ou sem ninguém
no mês que vem
neste país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim: quero
voar no concorde
tomar o vento de assalto
numa viagem num salto
(você olha nos meus olhos
e não vê nada -
é assim mesmo
que eu quero ser olhado).

um dia depois do outro
talvez no ano passado
é indiferente
minha vida tua vida
meu sonho desesperado
nossos filhos nosso fusca
nossa butique na augusta
o ford galaxie, o medo
de não ter um ford galaxie
o táxi, o bonde a rua
meu amor, é indiferente

minha mãe, teu pai a lua
nesse país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim.


Torquato Neto

Além-Tédio



















Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha côr!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…


Mário de Sá-Carneiro

sábado, 26 de maio de 2012

Rápido e rasteiro



















vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida



Chacal
(do livro "Muito prazer")

terça-feira, 8 de maio de 2012

Não gosto tanto de livros



















Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever


Adília Lopes