sábado, 21 de dezembro de 2013

Branca de Neve


Caibo melhor no mundo
se me dou conta do que julgava impossível:
'Nem todo alemão conhece Mozart.'
Um óbvio, pois nem é preciso,
cada país tem seu universal
e basta um para nos entendermos.
Com os russos me sinto em casa,
não podem ver uma névoa,
uma aguinha, uma flor no capim
e param eternos minutos fazendo diminutivos.
Como o jagunço Riobaldo que sabe do mundo todo
e tem Minas Gerais na palma da sua mão.
Fico hiperbólica para chegar mais perto.
"Geração perversa, raça de víboras"
não é também um exagero do Cristo
para vazar sua raiva?
Escribas e fariseus o tiravam do sério.
Mas todos eles? Todos?
Cheiramos mal, a maioria,
e sofremos de medo, todos. O corpo quer existir,
dá alarmes constrangedores.
Me inclino aos apócrifos como quem cava tesouros.
É evangélico que trabalhem cantando
os anõezinhos da história.
No fundo todos queremos
conhecer biblicamente,
apesar de que os pés de página,
por mania de limpeza,
não é sempre que ajudam.
O verdadeiro é sujo,
destinadamente sujo.
Não são gentilezas as doçuras de Deus.
Se tivesse coragem, diria
o que em mim mesma produziria vergonha,
vários me odiariam,
feridos de constrangimento.
Graças a Deus sou medrosa,
o instinto de sobrevivência
me torna a língua gentil.
Aceito o elogio
de que demonstro 'tino escolhitivo'.
Pra quem me pede dou lista de filme bom.
Demoro a aprender
que a linha reta é puro desconforto.
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana. Como o doido,
bato a cabeça só pra gozar a delícia
de ver a dor sumir quando sossego.


Adélia Prado

não para não para não para não


a palavra para que antes fazia pessoas
pararem agora já não tem acento igual
à palavra para que indica que as pessoas
estão indo para algum lugar geralmente
sem parar isso é um sinal dos tempos
o que antes parava agora não para não


Gregorio Duvivier


sábado, 6 de abril de 2013

rogo a deus dos céus
que tudo caia sobre mim
raios, fragmentos de meteoros e fonemas
trovoadas, maremotos e outros troços

rogo a deus dos céus
que tudo venha contra mim
novenas, cavalhadas e poemas
nuvens de gafanhotos e às centenas
estrondo de tambores carnavais


Paulo Cezar Alves Custódio (Paco Cac), "nuvem que não acabou".

segunda-feira, 25 de março de 2013

Noções



















Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera…


Cecília Meireles




sábado, 23 de março de 2013

Branco



















Para um afogado:
esta folha, como se
feita ao mar
em garrafa.

Para que
ainda enquanto o céu embarca
no ver-a-terra, um eco
da terra
possa singrar para ele,
cheio de lembrança da chuva,
e o som da chuva
caindo na água.

Para que
possa aprender,
malgrado a vaga
que ora naufraga do cimo
dos montes, que quarenta dias
e quarenta noites
não nos trouxeram a pomba
de volta.



White

For one who drowned:
this page, as if
thrown out to sea
in a bottle.

So that
even as the sky embarks
into the seeing of earth, an echo
of the earth
might sail toward him,
filled with a memory of rain,
and the sound of the rain
falling on the water.

So that
he will have learned,
in spite of the wave
now sinking from the crest
of mountains, that forty days
and forty nights
have brought no dove
back to us.



Paul Auster, do livro Wall Writing (1971-75), na coletânea Todos os poemas (2013).

Tradução de Caetano W. Galindo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013


To write more. To speak more. To whom?
How? Why? What sense does it make? Soon
we may be forced into silence. Soon
we may be forced to speak more
and more loudly. Who knows. But what
remains unspoken is always the most important:
this little man, this child, this
word, thought, and look of a child
deep inside you, you must guard,
you must defend and cherish.
And with it you will learn to speak,
and with it you will learn to be silent
if you must.


Jaan Kaplinski

domingo, 6 de janeiro de 2013


uma mulher insanamente bonita
um dia vai ganhar um automóvel
com certeza vai
ganhar um automóvel

e muitas flores
quantas forem necessárias
mais que as feias, as doentes
e as secretárias juntas

já uma mulher estranhamente bonita
pode ganhar flores
e também pode ganhar um automóvel

mas um dia vai
com certeza vai
precisar vendê-lo



Angélica Freitas, no livro Um útero é do tamanho de um punho.