terça-feira, 30 de março de 2010

Tudo num ponto (a versão de Italo Calvino para a teoria do Big Bang)




















Disse "como sardinha em lata" apenas para usar uma imagem literária; na verdade, não havia espaço nem mesmo para se estar espremido. Cada ponto de cada um de nós coincidia com cada ponto de cada um dos outros em um único ponto, aquele onde todos estávamos. (...) Se tudo estava tão bem assim, tão bem, é que qualquer coisa de extraordinário deveria acontecer. Bastou que a certo momento ela dissesse:
-- Pessoal, se tivesse um pouco mais de espaço, como gostaria de preparar um tagliatelle!
E naquele momento todos pensamos no espaço que teriam ocupado os seus roliços braços movendo-se para frente e para trás como rolo a adelgaçar a massa, o grande volume do peito descendo sobre o grande monte de farinha e de ovos que atulhava a imensa travessa enquanto seus braços amassavam amassavam, brancos e untados de óleo até os cotovelos; pensamos no espaço que haveria de ocupar a farinha, e o grão para fazer a farinha, e os campos para cultivar o grão, e as montanhas das quais descia a água para irrigar os campos, e os pastos para os rebanhos de gado  que forneceriam a carne para o molho; no espaço que seria necessário para que o Sol chegasse com seus raios e amadurecesse o grão; no espaço que seria necessário para que a partir das nuvens de gás estelares o Sol se condessasse e inflamasse; na quantidade de estrelas e galáxias e amontoados galácticos em fuga no espaço que teria sido necessária para manter suspensa cada galáxia cada nebulosa cada sol cada planeta, e no momento mesmo em que pensávamos esse espaço começou, incontidamente, a se formar: no exato momento em que a sra. Ph(i)NK° pronunciava aquelas palavras: "... um tagliatelle, hein, pessoal!", o ponto que a continha e a nós todos se expandia numa auréola de distâncias de anos-luz e de séculos-luz e milhares de milhares-luz, e éramos projetados para os quatro cantos do universo (o sr.Pbert Pberd foi bater em Pavia), e ela se dissolveu não sei em que espécie de energia luz calor, ela, a sra. Ph(i)Nk°, aquela em que em meio ao nosso fechado mundo mesquinho fora capaz de um impulso generoso, o primeiro, "Ah, pessoal, que tagliatelle eu prepararia!", um verdadeiro impulso de amor geral, dando início no mesmo instante ao conceito de espaço, e ao espaço propriamente dito, e ao tempo, e à gravitação universal, e ao universo gravitante, tornando possíveis milhares e milhares de sóis, de planetas, de campos de trigo e de sras. Ph(i)NKº, esparsas pelos continentes dos planetas batendo a massa com seus braços enfarinhados, untuosos e generosos, enquanto ela se perdia a partir daquele instante, deixando-nos a recordá-la saudosos.

Italo Calvino, trecho de Tudo num ponto, do livro As Cosmicômicas.

sábado, 27 de março de 2010

Eu conquisto o universo com palavras


















Eu conquisto o universo com palavras.
Desonro a língua materna,
A sintaxe, a gramática,
Os verbos e os nomes,
Violo a virgindade das coisas
E crio uma língua nova
Que esconde o segredo do fogo
E o segredo da água.
Ilumino a nova era
E detenho o tempo nos teus olhos,
Apagando a linha que separa
Este instante da passagem dos anos.

Nizar Qabbani



Nizar Qabbani (1923-1998) foi um poeta e diplomata sírio.

Sua poesia me foi revelada pelo blog Do trapézio, sem rede.

A versão para o português foi feita pelo autor do blog, a partir da tradução inglesa de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown, reproduzida em Arabian Love Poems (A Three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, Londres, 1998).


















Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c’um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.


Comunicado pelo Engenheiro Naval
Sr. Álvaro de Campos em estado
de inconsciência
alcoólica.


Álvaro de Campos / Fernando Pessoa (1927)


Com o desenho de Fernando Pessoa por Almada.















"Toda folha de grama tem seu anjo que se curva sobre ela e sussurra: 'Cresce, cresce'. Tivemos a sorte de nascer em famílias que nos ofereceram uma certa estrutura, que nos possibilitaram estudar e crescer - já nascemos arbustos. Poderíamos retribuir sendo, para as folhas de grama, o anjo que sussura."


Martha Medeiros, na Revista O Globo, em 21 de março de 2010.
 
Me foi sussurrado pelo Professor Texto. Valeu, Luiz!


Gênio.

terça-feira, 23 de março de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Sobre as vozes dentro e fora de nós: ouça-as.



O site TED - Ideas worth spreading tem palestras interessantíssimas.
Essa eu vi no Professor Texto, e repito inclusive seu comentário:

"As nossas vidas, as nossas culturas, são compostas por muitas histórias sobrepostas. A romancista Chimamanda Adichie conta a história emocionante de como descobriu a sua voz cultural - e adverte que se ouvirmos apenas uma história sobre outra pessoa ou país, arriscamos um desentendimento crítico."

Assista. Vale muito.

(Clique em "view subtitles" para escolher o idioma das legendas.)















Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.

Bertold Brecht

domingo, 14 de março de 2010

"Primeiro prêmio de violoncelo", de 1907



Filme da Pathé de 1907.
Diretor desconhecido.
Música de Eric Le Guen.

Uma graça.

E fica de homenagem aos amigos músicos. :-)

sábado, 13 de março de 2010

Don't stop believing




"Working hard to get my fill
Everybody wants a thrill
Payin' anything to roll the dice just one more time
Some will win, some will lose
Some were born to sing the blues
Oh, the movie never ends
It goes on and on and on and on"

;-)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Infinito particular















Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

De Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown.

Ouça aqui.

quinta-feira, 11 de março de 2010

segunda-feira, 8 de março de 2010




















Diego,
É uma verdade, bem grande, que eu
não queria falar, nem dormir
nem ouvir, nem querer.
Sentir-me encerrada, sem medo
de sangue, sem tempo nem magia,
dentro do teu próprio medo,
e dentro da tua grande angústia,
e mesmo no ruído do teu coração.
Toda essa loucura, se a ti perguntasse,
sei que seria, para o teu silêncio,
pura confusão.
Peço-te violência, na desrazão,
e tu, me dás a graça, tua luz e
calor.
Gostaria de pintar-te, mas não há cores,
por haver tantas, em minha
confusão, a forma concreta
do meu grande amor.

Frida Khalo, em seu diário, para Diego Rivera.

Com um dos auto-retratos de Frida.

domingo, 7 de março de 2010


















The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three beloved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) a disaster.

Elizabeth Bishop, em One art

(Valeu, Laura!)

Cidade Negra em "Girassol"



Com os mais sinceros desejos de que nossas vidas sejam sempre solares!
Gira sol!
:-)

sábado, 6 de março de 2010



"And straight jazz became hot", começa o narrador nessa pérola: imagens de Stéphane Grappelli e Django Reinhardt tocando no Quintette du Hot Club de France, o grupo criado por eles em 1934.

Lindo.



















Pés para que os quero
Se tenho asas para voar.

Frida Khalo

(com a reprodução da página de seu diário)

quinta-feira, 4 de março de 2010

















Você chama de violentas as águas de um rio que tudo arrastam, mas não chama de violentas as margens que o oprimem.

Bertolt Brecht



















O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade?

Padre Antônio Vieira

Vi no Palavra Aguda.



















Entendido já foi que a palavra que define exatamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa de uma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar à língua, é ter língua e não chegar ao amor.

José Saramago, em O evangelho segundo Jesus Cristo.

Li no (o grifo é meu).

















Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.
Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas.


















Eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento neste olhar.

Caio Fernando Abreu