quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Chuva de janeiro


A vida é excessiva
como um aguaceiro.
Vou de pés molhados
e na contra-mão
nas ruas inundadas
do meu coração.


Lêdo Ivo, em O soldado raso


Com imagem capturada no Bonito isso.
Só que lá tá em movimento, aqui eu não consegui... :-(

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Por um lindésimo de segundo

tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas


Paulo Leminski, em Distraídos venceremos

Simples assim:



Vi no Palavra Aguda.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

"O pior dos temporais aduba o jardim"



Viva Sérgio Sampaio!

Quer ver?

Escuta.


Francisco Alvim, em Poemas (1968-2000)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

De desejo somos





















A vida, sem nome, sem memória, estava sozinha. Tinha mãos, mas não tinha em quem tocar. Tinha boca, mas não tinha com quem falar. A vida era uma, e sendo uma era nenhuma.
Então o desejo disparou sua flecha. E a flecha do desejo partiu a vida pela metade, e a vida tornou-se duas.
As duas metades se encontraram e riram. Ao se ver, riam; e ao se tocar, também.

Eduardo Galeano, em Espelhos - Uma história quase universal

domingo, 27 de dezembro de 2009




















Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Fernando Pessoa

sábado, 26 de dezembro de 2009

Playing For Change: a paz através da música



Playing For Change: Peace Through Music, projeto criado por Mark Johnson, propõe usar a música como "liga" entre os povos, lembrando-nos de que somos todos da mesma raça... humana!

Veja também a inspiradora interpretação coletiva de Stand by me.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Antes que o homem faça, é necessário que sonhe
















"A convenção do calendário nos adverte de que demos mais uma volta em torno do sol, é costume fazer do ano a vir pequena e temporária utopia. Por mais pessoal que seja,  nos limites das próprias aspirações, sabemos que não a edificaremos sem a contribuição dos outros. Não há ser que possa viver absolutamente só. Para ganhar na loteria, esse sonho de alforria econômica e social, é preciso que outros apostem. É assim com tudo: o êxito das nossas empresas, a paz familiar, a alegria do reconhecimento alheio de nossas possíveis virtudes. E não é preciso falar nos sentimentos da amizade e do amor. Indivíduo é aquele que não pode ser dividido por outro, mas que pode e deve dividir-se, para multiplicar-se em seus atos e em seus
sentimentos. Ele se faz a partir dos outros, e sua inteligência, quaisquer que sejam os limites dos próprios atos e do conhecimento adquirido, irá influir sobre as pessoas com as quais conviva ou possa comunicar-se.

É raro pensar nessas coisas óbvias, exatamente porque são tão óbvias.

De forma quase natural aproveitamos estes dias de renovação da esperança para a confraternização. É o retorno à utopia maior, a da paz.

Quando passarem estas horas, voltaremos à guerra de todos contra todos, ou de quase todos contra todos, porque felizmente há quem resista, quem mantenha na alma a chama da solidariedade.

(...)

Mas as utopias são necessárias. Ao tentar realizá-las, as sociedades avançam. Assim foi possível abolir a escravidão, universalizar-se o ensino, melhorar o nível de vida e da saúde para grande parte da humanidade. Antes que o homem faça, é necessário que sonhe."


Mauro Santayana, em As convenções do calendário, publicado no Jornal do Brasil em 25 de dezembro de 2009.

Valeu, Silvio!














Eu quero apenas olhar os campos,
Eu quero apenas cantar meu canto,
Eu só não quero cantar sozinho,
Eu quero um coro de passarinho,
Quero levar o meu canto amigo,
A qualquer amigo que precisar.

Eu quero ter um milhão de amigos
E bem mais forte poder cantar

Da música Eu quero apenas, de Roberto e Erasmo.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009




















No meio das trevas, sorrio à vida, como se conhecesse a fórmula mágica que transforma o mal e o trágico em serenidade e felicidade. Aí, procuro uma razão para esta alegria, não a acho e não posso deixar de rir de mim mesma. Creio que a chave do enigma é própria vida.

Rosa Luxemburgo

 Valeu, Sandroca!!! :-)


Meu presente de Natal para todos: um lindo curta, Deep & Crisp & Even, escrito por Peter Souter e dirigido por Brett Foraker! Sobre a moça que vivia em um mundo congelado...

Com os atores Timothy Spall e Natascha McElhone.

Valeu, Luiz! Achei tão lindo que resolvi compartilhar!!! ;-)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O tempo da delicadeza



Cena final de Luzes da cidade, de Charles Chaplin: a moça, antes cega, reconhece pelo toque das mãos seu benfeitor, que ela supunha rico e belo.

Lindo.

domingo, 20 de dezembro de 2009




















dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de walter franco
ter sempre uma cabeça a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
nunca me sentir insultado
com os golpes do acaso ou do destino

dai-me
ou eu consigo sozinho

 
Paulo Leminski (1979), publicado em Envie meu dicionário

sábado, 19 de dezembro de 2009

My Generation



O documentário The kids are allright (1979), dirigido por Jeff Stein, mostra shows, videoclipes e entrevistas do The Who realizados entre 1965 e 1978.

Esse é o trecho inicial do filme: uma apresentação de My Generation, ao mesmo tempo hilária e clássica!

Trata-se de uma participação do The Who no The Smothers Brothers Comedy Hour, na televisão americana em 1967. Tommy Smothers, da dupla folk-comediante The Smothers Brothers, havia presenciado a incrível performance do The Who no Festival Pop de Monterey, naquele ano, e convidou-os a aparecer em seu programa de variedades. O Who no entanto não seguiu o script e, para completar, o impagável Keith Moon subornou o contra-regra para que ele dobrasse os explosivos do final combinado, que ficou então bem mais apoteótico. Quando detonada, a explosão pegou bem no ouvido de Pete Townshend e ainda incendiou seu cabelo (dá pra ver ele apagando as faíscas), além de lançar um fragmento que cortou o braço de Keith. Roger Daltrey conta a história de que a atriz Bette Davis, esperando nos bastidores o momento de sua participação no programa, teria desmaiado nos braços do ator Mickey Rooney. Essa foi a única aparição do The Who em um show de variedades norte-americano...  :-)
“Entendi que a vida não tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar.”

Lya Luft, em Perdas e ganhos

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pra sempre Mutantes



Assisti ao documentário Loki, que faz jus à genialidade de Arnaldo Batista.
Aqui, um pouco d'Os Mutantes, em 1969, cantando Fuga Nº2.

Hoje eu vou fugir de casa
Vou levar a mala cheia de ilusão
Vou deixar alguma coisa velha
Esparramada toda pelo chão
(...)

O sinal está vermelho e os carros vão passando
E eu ando, ando, ando
Minha roupa atravessa e me leva pela mão

 
Linda letra!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

















Você não sente, não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer


Trecho de Velha roupa colorida, de Belchior

Ouça aqui, na interpretação inesquecível de Elis Regina.

A minha na sua

Como se entra na vida do outro?
Por uma fresta do olho ou do coração?
Como um sopro de vida ou furacão?
Como uma fagulha ou por esbarrão?
Por descuido ou por atração?
Por coragem ou por medo do não?

Como se sai da vida do outro?
Olha-se o mar aberto,
E empreende-se intensa natação.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

"Everybody, let's rock!"



Sensacional apresentação de Elvis em 1968, cantando Jailhouse Rock, música de Jerry Leiber e Mike Stoller.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009



“Cumpre-lhes recusar os limites de sua situação e
procurar abrir para si os caminhos do futuro.
A resignação não passa de uma demissão e de uma fuga.”

Simone de Beauvoir

Com foto de Elliot Erwitt (Paris, 1949).

Leite de pedra

O apressado come cru
O curioso come sashimi

Mauro Santa Cecília, em Olho frenético

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

I don't like mondays



Bob Geldof foi vocalista da banda irlandesa Boomtown Rats (1975-1984), um grupo de punk rock/new wave. O primeiro sucesso internacional deles aconteceu em 1979, com I don't like mondays, uma música controvertida, sobre a tentativa de massacre feita por uma jovem americana contra crianças de uma escola na Califórnia, naquele mesmo ano.

Bob Geldof foi também ator do filme Pink Floyd - The Wall, versão cinematográfica feita para o clássico disco do Pink Floyd, dirigida por Alan Parker, no ano de 1982.

Em 1985, Bob Geldof foi idealizador do lendário festival Live Aid, com o objetivo de arrecadar fundos para as vítimas da fome na Etiópia. Os concertos foram realizados no Wembley Stadium em Londres (com uma platéia de aproximadamente 82 mil pessoas) e no John F. Kennedy Stadium na Filadélfia (aproximadamente 99 mil pessoas). Foi uma das maiores transmissões de televisão por satélite de todos os tempos. Estima-se que 1,5 bilhão de espectadores, em mais de 100 países, tenham assistido à apresentação ao vivo. O montante final arrecadado superou em muito as expectativas iniciais de 1 milhão de libras: estima-se que tenha ultrapassado os 150 milhões de libras (aproximadamente 283,6 milhões de dólares). Em reconhecimento a seus esforços, Geldof foi posteriormente condecorado com a ordem de Cavaleiro do Império Britânico.

Ainda hoje Geldof tem importante atuação junto a causas humanitárias e é conhecido por não medir suas palavras, doa a quem doer.

E estava eu aqui com alguns pensamentos não tão nobres (rs rs), chegando à conclusão de que Geldof e Hugh Laurie (o ator do seriado House) são dois dos homens mais charmosos do mundo, quando encontrei isso: um vídeo com I don't like mondays e imagens do doutor House!!!

:-)

Quer continuar a se divertir? Se você é tão fã de House e The Who quanto eu, vai gostar dessas versões com Behind blue eyes e Baba O'Riley.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Uma coisa é um homem, por engano, dirigir seu carro para a casa antiga, mas é algo bem diferente, eu creio, ele não reparar que as coisas mudaram dentro da casa. Mesmo a mente mais cansada ou distraída preserva um reduto de reações puras, animais, e consegue transmitir ao corpo a sensação do local onde está. Seria preciso estar quase inconsciente para não enxergar, ou pelo menos não sentir, que a casa já não era a mesma de antes. “O hábito”, como diz um dos personagens de Beckett, “é um grande entorpecente.” E se a mente é incapaz de reagir diante de uma evidência física, o que fará ao se confrontar com uma evidência emocional?

Paul Auster em A invenção da solidão

Tava lá no (o grifo é meu).
"Gente é pra brilhar,
Não pra morrer de fome"

Da música Gente, de Caetano Veloso

E eu acrescentaria: seja fome do que for...

;-)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Another saturday night!!!



Cat Stevens: astral total!

Autocomiseração

Nunca vi algo selvagem
tendo pena de si mesmo.
Cai um pássaro morto de frio de um galho
sem nunca ter tido pena de si mesmo.


Self-Pity
I never saw a wild thing
sorry for itself.
A small bird will drop frozen dead from a bough
without ever having felt sorry for itself.

D.H. Lawrence

Vi no Palavra Aguda.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Walk on the wild side!!!



Não preciso dizer nada. Lou Reed diz tudo!

E esse é o simpático clip produzido por Monica Bielanko, a partir de suas próprias fotos e vídeos.

No Youtube há vários clips para essa música, inclusive um interesante trecho de gravação feita pela TV alemã em 1976: veja aqui.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

HAIR!



Meu filme preferido, minha cena preferida.



Hair (1979), dirigido por Milos Forman,
coreografado pela fantástica Twyla Tharp.

Adaptação para o cinema da revolucionária peça teatral de 1968.
“Refletir é transgredir a ordem do superficial.”

Lya Luft, em Perdas e Ganhos

terça-feira, 8 de dezembro de 2009


– E, como sou filósofa – continuou Emília –, quero que minhas Memórias comecem com a minha filosofia de vida.

– Cuidado, marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.

– Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda até que dorme e não acorda mais. É portanto um pisca-pisca.

O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto.

Emília riu-se.

– Está vendo como é filosófica a minha ideia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu… A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.

– E depois que morre? – perguntou o Visconde.

– Depois que morre vira hipótese. É ou não é?

 
Monteiro Lobato, em Memórias da Emília
 
Agradeço ao pessoal do (o grifo é meu) por me lembrar de tão maravilhosa passagem.

E viva Monteiro Lobato!


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Fred & Ginger!!!



Fred Astaire e Ginger Rogers no filme Roberta, de 1935. Lindos.

Versículo 2

Não sou alegre
Nem sou triste
Sou profeta

Sou pregador
de cabelo
que se soltou
e deixou
a mecha
voar ao vento

Sou santa
paciência
que se esgota
sou a marmota
na moita
que se esconde
do caçador

Sou seu amor
sou seu desatino
sou seu hino
seu fado
safada
cefaléia
na sua sua cabeça
sou sua enxaqueca
sua cibalena
sou cantilena
terço
seu quarto
de ácido
sulfúrico
sua paixão
de cristo
cristão
judeu
muçulmano
que espécie de mártir
sou eu?

se meu
martírio
é só pra te salvar...

Do Evangelho segundo Mathilda Kóvak

domingo, 6 de dezembro de 2009

Ler é a maior viagem!



Sensacional! Vi no sempre instigante Professor Texto, que explica:

"Livros dão vida a histórias por meio da imaginação. Partindo desse pressuposto, Andersen M Studio criou a animação para a New Zealand Book Council, uma organização da Nova Zelândia que promove livros e seus escritores, e ainda incentiva a leitura. A animação usou por volta de 3.000 imagens para seus um pouco mais de 2 minutos e mostra, através de páginas de um livro, o conto Going West de Maurice Gee ganhando vida. É como aqueles cartões pop-up caríssimos que vendem nas papelarias, mas nesse caso, as imagens contam uma história. Além da internet, o filme está sendo exibido nos cinemas da Nova Zelândia e também foi lançado em DVD como parte do pacote promocional do filme Under the Mountain."

sábado, 5 de dezembro de 2009

"Sooth your pain", por Dub Fx



O australiano Dub Fx utiliza pedais de efeito e loops para criar camadas sonoras e construir músicas, usando apenas sua voz. Ele viaja pelo mundo, apresentado-se nas ruas.
Para conhecer mais, clique aqui.

Dica do Godum, sempre ligado!

Inscrição para um tapume

Desejo tudo quando nada quero.
Estar longe é o meu modo de estar perto.
Por mais que invente, sempre sou sincero.
Quanto mais sonho, mais estou desperto.

Lêdo Ivo, em O soldado raso

Elis Regina!!!



Maravilhosa apresentação de Elis Regina em 1972.
Até onde dá para perceber, parece que é um programa da RAI italiana.

(com Elis, até bossa nova fica bom!)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Qual a coisa mais importante do mundo?

Clarice Lispector: Hélio, diga-me agora, qual a coisa mais importante do mundo?
Hélio Pellegrino: A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutualidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. Por mediação dele, na medida em que recebo sua graça, conquisto para mim a graça de existir. É esta a fonte da verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo – Deus comigo. O amor ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e pela transformação do mundo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Stevie Wonder em Vila Sésamo!!!



Stevie Wonder + Superstition + Vila Sésamo = alegria total!

Reparem no garotinho de blusa laranja dançando amarradão no alto da varandinha! ;-)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Jeff Buckley em "Hallelujah"



Maravilhoso.

E para quem não conhece: em 1997, aos 31 anos, Jeff Buckley morreu afogado no rio Wolf, afluente do rio Mississipi.  Músico fantástico, merece ser conhecido.

Valeu, Estela!

Mapa astral

Há registro de alguém que tenha contrariado a determinação dos astros?
E se eu seduzir as cartas do tarô?
E se com as linhas da mão eu traçar outro caminho?
Sou humana, demasiadamente humana.
E hoje acordei com uma raiva danada de você.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009



Com efeito por momentos o silêncio é tal que a terra parece não ter quem a habite. Aqui está até onde leva o amor pelas generalizações. Basta não ouvirmos, no nosso buraco, durante alguns dias, outro ruído diferente do das coisas, para começarmos a julgar-nos o último exemplar do gênero humano. E se me pusesse a gritar? Não é que queira chamar as atenções sobre mim, mas só para tentar descobrir se há alguém. Mas não gosto de gritar. Falei baixinho, movi-me devagar, sempre, como convém a quem nada tem a dizer nem sabe para onde ir. Sem contar que pode muito bem não haver ninguém num raio de cem passos, e a seguir uma população tão densa que as pessoas andem umas por cima das outras. Ninguém se atreve a aproximar-se. Nesse caso esfalfar-me-ia em pura perda. Apesar de tudo vou tentar. Tentei. Nada ouvi de insólito. Sim, uma espécie de rangido escaldante ao fundo da traquéia como quando se tem azia. Com o treino talvez ainda acabe por fazer um gemido. O melhor seria dormir. Infelizmente já não tenho sono. De resto não devo dormir mais. Que maçada. Perdi o comboio.

Samuel Beckett, em Malone morre