terça-feira, 20 de abril de 2010

O que passou, passou?




















“Somos aquilo que nos lembramos e, além disso, eu costumo acrescentar, somos também aquilo que podemos esquecer”, diz Ivan Izquierdo em Utopia e Barbárie. Faz lembrar a advertência de David Lowenthal, de que o “passado não está simplesmente lá, num país separado e estrangeiro, ele é assimilado por nós e ressuscitado num presente sempre em mutação”. “Assim como somos produtos do passado”, ele continua, “também o passado conhecido é um artefato nosso”. Então, o que passou nos constitui (enquanto identidade) e (enquanto narrativa) está sendo permanentemente transformado pelo que somos, hoje.

A história já foi tida como um repositório de ensinamentos atemporais e, portanto, eternos. A “história mestra da vida” oferecia as lições morais de um tempo (supostamente) sempre igual. O historiador Reinhart Koselleck explica que, na acepção da Antiguidade ou do Cristianismo, não se esperava do futuro algo de fundamentalmente novo, mas somente algo análogo ou igual. O horizonte de expectativa acerca do futuro coincidia com o espaço de experiência vivido até então.

É o Iluminismo - e sua noção de progresso - que produz o descolamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. A história passa a ser entendida como um espaço aberto à experiência humana. A história passa a ser percebida enquanto processo. Na visão iluminista, um processo de realização da razão. O Iluminismo instaura o “reino da crítica”, diz o historiador alemão. E “a crise invoca a pergunta ao futuro histórico”. A Revolução Francesa encarna o lugar de acontecimento paradigmático dessa nova (ou melhor, nascente) consciência histórica: a noção de que as coisas podem ser diferentes, e melhores. A história passa a ter motor: as idéias, os ideais, os “ismos” (que Koselleck chama de conceitos de movimento), tais como o republicanismo, o socialismo, o comunismo e tantos outros...

Chegamos, então, a Utopia e Barbárie. O filme de Silvio Tendler narra a experiência do século XX e mostra a humanidade em seus movimentos de utopia e barbárie. O século XX dos lemas libertários da década de 1960 é o mesmo século em que o Holocausto provou que a humanidade nem sempre se move na direção do progresso e da razão. Como já bem disse o poeta Ferreira Gullar, a humanidade do ser humano é uma coisa inventada, pelo próprio homem.

A recente tragédia no Haiti, em janeiro de 2010, adverte: as conseqüências de nossos atos históricos podem voltar qual tsunami, qual terremoto, e destruir tudo. A tragédia do Haiti não é apenas natural (o terremoto). Como escreveu Mauro Santayama, ela é histórica. O passado de exploração sobre o povo haitiano semeou a obra de desvastação que o terremoto apenas concluiu. O passado, portanto, não é algo que passou.

George Kubler, historiador americano, escreveu: “Todos os eventos do passado são mais remotos para os nossos sentidos do que as estrelas das mais distantes galáxias, cuja luz pelo menos ainda alcança os telescópios”. Pois Silvio Tendler construiu, com Utopia e Barbárie, um potente telescópio, que aponta para o passado, mas também para o futuro, na medida em que pode instaurar um espaço de reflexão, de crítica. Sobre nós, sobre o que viemos fazendo – enquanto humanidade – até aqui. Que Utopia e Barbárie instaure uma produtiva crise em nossos corações e nos leve a fazer perguntas sobre nosso futuro histórico!

Cada vez que assisto a Utopia e Barbárie fico emocionada. De sua origem no Latim, emocionar-se quer dizer que ficamos movidos para fora de nós mesmos. Tomara que vocês se emocionem ao ver esse filme. Tomara que fiquem tocados a buscar caminhos para fora de si e na direção do outro, fraternalmente. Como diz o poeta Ferreira Gullar no documentário, uma vez que a vida é finita, é no outro que teremos continuidade. Salve, Silvio, seu filme inspira! Ecoam suas palavras: "Solta o coração e vai!".

Carla Siqueira

(Texto escrito para a revista de lançamento do filme Utopia e Barbárie de Silvio Tendler, que entra em cartaz no próximo dia 23 de abril. Para assistir o trailer, clique aqui.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário