sábado, 24 de outubro de 2009

Sobre a leitura



“Não há talvez dias de nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente quanto aqueles que acreditamos passar sem vivê-los, aqueles que passamos com um livro preferido. Tudo aquilo que parecia preencher os dias para os outros, e que nós descartávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: o jogo para o qual um amigo vinha nos chamar logo na passagem mais interessante; a abelha ou o raio de sol incômodos que nos forçavam a elevar os olhos da página ou mudar de lugar; o lanche que alguém nos trouxe e que deixamos ao lado, sobre um banco, sem tocá-lo, enquanto, acima de nossa cabeça, o sol diminuía de força no céu azul; o jantar para o qual era preciso voltar à casa e durante o qual não pensávamos senão em terminar, imediatamente depois, o capítulo interrompido; tudo isso, de que a leitura teria nos impedido de perceber outra coisa que não o importuno, deixou em nós ao contrário uma lembrança realmente doce (realmente mais preciosa em nosso julgamento atual que aquilo que líamos então com tanto amor), que, se nos ocorre hoje ainda folhear esses livros de outrora, não é senão como calendários que nós teríamos guardado dos dias já passados, e com a esperança de ver refletidos sobre suas páginas as habitações e os lagos que não existem mais.”
Marcel Proust
Obs: tradução minha, agradeço a indicação de eventuais imprecisões e erros.

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